21/06/2016

Língua-de-trapos 3


Caça ao pleonasmo

“Gritei alto”? “Encarei-o de frente”? Sim, está bem, mas qual é o problema?!
Os pleonasmos estão inscritos no uso dial da língua com tal naturalidade que se torna difícil tomar deles consciência, a não ser, claro está, aqueles que têm sido perseguidos, caçados e açoitados no pelourinho linguístico. Pegou moda fuzilar todo o falante que diz “ambos os dois” ou aquele que “desce para baixo”. Enfim! Bojardas de quem acha que nunca escorregou na discreta pista da tautologia.

1- A verdade é que não há quem nunca tenha recorrido a expressões pleonásticas (isto, só para começar);
2- A maioria dos falantes que arreia nos outros por causa do “ambos os dois” arrota pleonasmos, diariamente, como se de postas de pescada se tratasse (ah, pois é!);
3- E qual é o problema do seu uso, afinal?!

Dizem algumas “mentes brilhantes” que ao dito só podemos recorrer quando confinados a um registo literário. Acrescentam os mesmos “doutos” que tal recurso expressivo serve para reforçar uma ideia, como se, no dia-a-dia, não o pudéssemos fazer com igual propósito!
Quem nunca disse “há uns anos atrás” que atire a primeira pedra. Se nos referimos “há uns anos”, então é forçosamente atrás.

«Ah, está bem, ó Alcídio, mas esse não é tão grave como o ambos os dois».
«Não é tão grave?! Então, mas agora temos uma graduação de gravidade pleonástica?! Essa agora!»

Bom, deixemo-nos mas é de purismos descartáveis, principalmente daqueles que são fomentados pela rádio e pela televisão, através de programas ditos de “bom português”, mas que, bem vistas as coisas, não passam de amadorismo linguístico que apenas serve para encher chouriços.
Já agora, “sinais exteriores de riqueza” não será também um pleonasmo? É que, em termos semióticos, todo o sinal é exterior, caso contrário não poderia ser captado pela visão ou por qualquer um dos outros quatro sentidos. O mesmo não acontece com “sinais de riqueza exterior”, uma expressão que contrasta com “sinais de riqueza interior”. Nestes dois casos, estamo-nos a referir ao perfil moral dos indivíduos, o que não acontece com o primeiro exemplo (com sentido de ostentação ou fausto). E quantas vezes os caçadores de pleonasmos já não proferiram aquela expressão? E quantas vezes a já não verbalizei eu?
Bom, deixem-se lá dessas coisas, está bem?
Até qualquer dia.

4 comentários:

  1. Alcídio, a mim também me ensinaram isso: que o uso do pleonasmo está confinado ao texto literário. Mas, vistas bem as coisas, por quê estar a criticar uns e a permitir outros? É como uma pessoa dar um raspanete a alguém que cuspiu no chão em plena rua e, logo a seguir, sentar-se num banco de jardim e começar a cortar as unhas dos pés. Ou puxamos as orelhas aos dois ou então deixamo-los em paz.
    A sua rubrica "Língua-de-trapos" é extremamente útil e já comecei a colecioná-la com copy/past (salvaguardando os direitos de autor, claro).

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  2. É, Letícia, os falantes da nossa língua recorrem constantemente às figuras da retórica nos enunciados correntes da comunicação diária, principalmente a metáfora e a metonímia. Aliás, já foi feito um estudo sobre esta matéria e a conclusão a que os investigadores chegaram é muito esclarecedora: alguns falantes são preponderantemente metafóricos, enquanto outros revelam uma tendência metonímica. Expressões como “árvore genealógica”, “maçã do rosto”, “nascer do sol” ou “assistir à bola na televisão”, “dar o telemóvel a alguém” e “ter um hectare de vinho” são disso alguns exemplos.
    Quanto ao "copy/past" da minha rubrica, sirva-se à vontade (é um prazer saber que o faz).

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  3. E sem “adiar para depois” cá estou eu a fazer um comentário.
    Sempre que leio estes textos apetece-me “bater palmas com as mãos” pois são sempre "de lhes tirar o chapéu da cabeça”, de "certeza absoluta" que não sou só eu que os considero “brutais”.
    O “elo de ligação” entre o aprender e o divertir com o que escreves "é verdade verdadeira” muito forte, de “certeza absoluta” que todos concordam comigo.
    Apetece-me "gritar alto":
    -Adorei.

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    1. Ena tantos! Cá está, a nossa língua (como as demais) é uma incubadora de pleonasmos. Daí a minha pergunta: por que razão uma atitude persecutória para uns e a indiferença total para outros?

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