05/12/2021

Não digam “rúbrica”, por favor!

Caros leitores, se estiverem atentos à forma como, na conversação dial e também na nossa comunicação social, é pronunciada, de forma reiterada, a palavra “rubrica”, constatarão que esse vocábulo ocorre com a prolação [‘ubrikα], como se a tónica estivesse localizada na primeira sílaba, ou seja: rú–bri-ca.

Ora, mandam as regras da prosódia da língua portuguesa que a palavra em questão seja pronunciada com a tónica na penúltima sílaba [u’brikα], na medida em que se trata de uma palavra paroxítona.

Desenganem-se, por isso, todos aqueles que defendem a coexistência das duas formas, alegando que “rúbrica” nos remete para uma assinatura abreviada e “rubrica”, quando falamos de um assunto, matéria, tópico, programa radiofónico ou televisivo. A palavra deve pronunciar-se com acentuação grave para todas as suas aceções, não possuindo, na escrita, qualquer acento gráfico.

Já agora, deixo-vos aqui uma pequena abordagem à história deste vocábulo tão maltratado nos nossos dias:

Do latim rubrĩca, œ (tinta vermelha), diretamente ligada a ruber, rubra e rubrum (vermelho), tinha como significado “argila vermelha”. O facto de os livros ancestrais e os manuscritos medievos possuírem os seus títulos a cor vermelha fez com que a sua designação passasse a ser conhecida como rubricas. O mesmo sucede com a letra ou linha inicial de um capítulo em códices antigos; as notas dos breviários ou missais; ou os títulos dos capítulos de livros de direito… todos eles escritos a tinta vermelha. Só muito mais tarde, a mesma palavra adquiriu o alcance semântico de assinatura abreviada.

Esta foi a minha rubrica de hoje.

03/09/2021

Até sempre, Isabel da Nóbrega

 



Uma vida que se perde, um estro que perdura.

Celebremos o mérito de mais um grande valor da nossa literatura. Maria Isabel Guerra Bastos Gonçalves, assim chamada desde o nascimento, mas que, na esfera das belas letras, se viria a afirmar sob o pseudónimo de Isabel da Nóbrega.

O talento, no entanto, não se fez apenas valer na literatura. Com a escritora parte também uma imagem de marca do jornalismo.

Foram 96 anos de dedicação e afirmação feminina no panorama cultural do nosso país e do mundo.

Fica para sempre a sua obra, o seu legado intelectual e a beleza irrepetível dos seus olhos.

Obrigado!

16/06/2021

Linguagens inclusivas/neutras? Não, obrigado!



  Antes de mais, quero deixar claro que não sou daqueles que se batem pelo estaticismo da língua portuguesa, mas também não me quero prevalecer do estereótipo falacioso de que a língua é um organismo vivo. Ela só existe no uso que os seus utilizadores dela fazem e, claro, só destes dependem as suas mutações lexicais que, uma vez consagradas no seu uso, se perpetuam no tempo e merecem, no caso da Língua Portuguesa (LP), a aceitação das duas instituições com maior autoridade lexicográfica: a Academia das Ciências de Lisboa e a Academia Brasileira de Letras.

  Sirvo-me desta nota introdutória como mote de reflexão em torno das chamadas línguas inclusivas e neutras. E, desde já, vinco a minha total discordância quer em relação a uma, quer em relação a outra. Os modismos são o que são e valem o que valem. Vejamos, primeiro, em que é que consiste cada um destes conceitos:

  1 – Linguagem inclusiva (não sexista)

  Trata-se de uma suposta variante que, não se propondo alterar o léxico da LP tal como o conhecemos, advoga uma comunicação pretensamente não discriminatória, sob o ponto de vista do género. Vejamos um exemplo muito recorrente: “Portugueses e portuguesas…”, quando um orador se dirige a um público compósito (homens e mulheres);

  2 – Linguagem neutra (não binária)

  Prossegue os mesmos objetivos da linguagem inclusiva, mas altera palavras já existentes ou introduz novos vocábulos. É o caso da neutralização das desinências de género do pronome “todos”. Vejamos um exemplo concreto: “Saiam todes da sala!”

  Na base destes dois tipos de linguagem, estão conhecidos movimentos feministas de todo o mundo, bem como organizações inclusivas de pessoas de diversas orientações sexuais e identidades de género. Desenganem-se todos aqueles que veem na eclosão destas linguagens meras iniciativas efémeras. Não, estas linguagens estão a afirmar-se em todos os cantos do planeta, nomeadamente na Europa. Tomemos como ilustrativo o recente caso ocorrido em França, onde o respetivo poder político vetou o uso da chamada gramática igualitária em documentos oficiais, com a devida concordância da Academia Francesa que chegou mesmo a referir-se a esta tendência linguística como “um perigo de morte para a francofonia”.

  A flexão em género é uma característica do nosso idioma, à imagem do que acontece, genericamente, com as restantes línguas neolatinas. Sobre a origem desta flexão, nomeadamente da predominância do género masculino em algumas palavras (outrora com desinência neutra), já me pronunciei num artigo anterior, também aqui publicado. Alterar este status quo linguístico em nome da igualdade de género não faz para mim o menor sentido. É urgente acabar com aquilo que aqui rotulo como vanguardas fundamentalistas e que estas linguagens acima explicitadas não passem de um mero processo de intenções. Imagine-se termos agora que expandir os nossos dicionários com entradas de género regular: gato/gata; menino/menina... NÃO, OBRIGADO!

  As sociedades ainda permanecem fieis à sua matriz machista, é certo, mas não se remedeia um erro com outro erro. Não é pelo facto de um político iniciar os seus discursos com expressões como “portuguesas e portugueses” que se combate a discriminação de género. Haja coragem para o fazer, mas sem se recorrer a adornos linguísticos estéreis ou a quaisquer outros atavios infecundos.


14/02/2021

"Cântico Negro" na voz de Sandra Coelho



   Já quase 100 anos nos separam (ou nos juntam) dos Poemas de Deus e do Diabo da lavra de José Régio. Deles trago aqui o Cântico Negro, o poema-manifesto que subsume em si todo um estilo presencista que viria a marcar a obra poética deste escritor modernista, uma pedra no charco que agita a cultura portuguesa, anémica e irresoluta, do primeiro quartel do século XX.

   O sujeito poético não quer ir por aí, porque por aí vão todos os outros. Não estamos perante uma atitude isolacionista, mas antes de um ego inconformado, uma ovelha tresmalhada em rota de colisão um alter seguidista.

 

   É nesta individualidade que o modernista se refugia e se recusa a ser igual aos demais, resistindo ao chamamento de uma sociedade apática e previsível. Um sujeito poético que opta; um eu que faz escolhas sem interferências externas; que não teme as consequências das suas decisões, mesmo que estas o conduzam ao fracasso e ao grotesco (amo os abismos, as torrentes, os desertos...); que abraça a novidade emergente de uma vida moderna, instável e progressista, em rotura com o cheiro a mofo do conservadorismo: a sua vida é um vendaval que se soltou, uma onda que se alevantou, um átomo a mais que se animou...

 

   Mas o poeta também se mostra na sua dimensão metafísica, característica que entalha a sua obra com uma religiosidade indelével: Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!

 

   Parabéns à Sandrinha pela forma brilhante como deu voz ao poeta!

 

Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

 

A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe

 

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

 

Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?


Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

 

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

 

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

 

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

 

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,

É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!

03/01/2021

Um brinde à memória de Torga


  Hoje lembrei-me de Torga. Como durienses que somos, gostamos de fruto da videira e do trabalho do homem. Eu gosto, ele, provavelmente.

  Peguei num dos seus livros e abri uma garrafa de vinho da nossa zona. Coloquei dois copos sobre a mesa e fiz o ofertório: um para mim e outro para ele. A ideia era ir bebendo enquanto lia. Beber um copo no final de cada poema. O dele manteve-se cheio, o meu, nem por isso.

  Guardei o fundo da garrafa para este:

 

Súplica

Agora que o silêncio é um mar sem ondas,
E que nele posso navegar sem rumo,
Não respondas às urgentes perguntas
Que te fiz.
Deixa-me ser feliz
Assim,
Já tão longe de ti como de mim.
Perde-se a vida a desejá-la tanto.
Só soubemos sofrer,
enquanto O nosso amor Durou.
Mas o tempo passou,
Há calmaria...
Não perturbes a paz que me foi dada.
Ouvir de novo a tua voz seria
Matar a sede com água salgada