06/03/2024

Entre Tânger e tangerina

 


    Há dias, enquanto fazia algumas compras num minimercado perto da minha casa, lembrei-me de como há palavras que carregam, na sua origem, informação sobre a nossa história. Estava na secção da fruta e, num papel identificador, estava escrito «tangerinas: 2 euros o quilo”. Não foi o preço que me chamou a atenção nem tão-pouco a vontade de as comprar. Foi a palavra em si.

    Fala-se hoje muito, nas escolas, dos domínios de autonomia curricular (as chamadas DAC) e das suas potencialidades na exploração de percursos pedagógico-didáticos que intersetam aprendizagens de diferentes disciplinas. Logo ali, pensei nas muitas palavras da nossa língua que podem convocar um trabalho interdisciplinar bastante fecundo entre a Língua Portuguesa e a História. É que a palavra “tangerina” (outrora chamada laranja tangerina) pode ser, também ela, um discreto documento histórico.

    A palavra recebeu o seu nome de Tânger, a importante cidade do norte de África, conquistada pelos portugueses em 1471. Era aí, nomeadamente no seu porto mercantil, que o pequeno citrino era exportado para a Europa.

    Tangerina, variante feminina de tangerino (gentílico que significa natural da cidade de Tânger), crescia abundantemente nos pomares daquela região e foram precisamente os árabes que a introduziram em Portugal.

    Deixo aqui esta sugestão para “descascar” um trabalho articulado com os alunos, convidando também os professores de Ciência Naturais a juntarem-se a este desafio, pois há também que classificar o fruto sob o ponto de vista científico e nutricional.

08/12/2023

“COM CERTEZA” DE QUE É ASSIM QUE SE ESCREVE

 



   Não obstante as minhas limitações científicas sobre matérias relacionadas com a Astrofísica, a verdade é que não perco uma oportunidade para ler notícias e artigos sobre o este assunto, pelo fascínio incomensurável que ele me causa. Foi precisamente num desses momentos de leitura que me deparei com algo que me despertou a atenção linguística e mereceu, por isso, um devido apontamento que aqui vos trago.

   O texto em causa veicula a opinião de Vítor Cardoso, um ilustríssimo físico cuja mestria e superlativa erudição de pensamento não passa despercebida na comunidade científica internacional. O artigo vinha publicado no jornal Expresso do pretérito dia 6/10/2020, na sua edição digital (Estamos a aproximar-nos cada vez mais da superfície dos buracos negros - Expresso).

   A certa altura, escreve o autor:

     «[…] Isto não prova que esse objeto seja um buraco negro - na realidade, por definição é impossível provar que buracos negros existem - mas é concerteza evidência boa […]» (sublinhado meu).

   Não configurando propriamente um buraco negro na ortografia portuguesa, não deixo de destacar o erro na grafia de “com certeza”, muito comum, aliás, na generalidade dos utilizadores da nossa língua. Erros como este há-os em quantidades generosas e resultam de uma clara interferência da oralidade na escrita, na medida em que quem fala tende a aglutinar sons que devem ser separados por quem escreve.

   Fenómeno semelhante é aquele que se verifica em equívocos tão recorrentes como “benvindo” em vez de “bem-vindo”, “depressa” em vez de “de pressa”, “derrepente” em vez de “de repente” ou “secalhar” em vez de “se calhar”.

07/07/2022

Dignitário e não dignatário

   Na edição do jornal Expresso do dia 10 de março deste ano, foi veiculada uma notícia sobre a guerra na Ucrânia que dava nota da vontade de o papa Francisco mediar um entendimento diplomático entre os dois líderes em conflito, tendo, inclusivamente, nomeado dois cardeais para esse efeito. A certa altura, lê-se o seguinte:

 “As movimentações diplomáticas não esgotam, porém, as ações que o Papa Francisco tem levado a cabo nos últimos dias e que passaram pelo envio, para o cenário de guerra, de dois altos dignatários de Roma.”

   Com todo o respeito que me merece o semanário informativo e o jornalista responsável pela redação do texto, não posso deixar de assinalar um erro de português que ocorre neste pequeno excerto, mais especificamente na palavra dignitário, aí escrita erradamente.

   É certo que não se trata de um erro incomum, pelo contrário, ele ocorre com muita frequência no uso dial da nossa língua. Contudo, estamos a falar de um jornal de referência no universo da comunicação social, do qual se exige o devido rigor.

   A tendência para o uso errado da palavra, na forma “dignatário”, decorre de um fenómeno de contágio marcado pela grafia do verbo “dignar”.

   Trata-se de um vocábulo que resulta do aportuguesamento do “dignitaire” francês que, por sua vez, radica do termo latino “dignitate”. A história fonética da palavra “dignitário” revela-nos um possível estado intermédio que a fixou como “dignitatário”, já com a presença do sufixo “-ário”, sobre a qual foi exercida uma haplologia que fez cair a terceira sílaba, resultando na forma sincopada “dignitário”, atualmente usada na nossa língua.

   Esta vocação evolutiva do vocabulário português para a supressão da primeira de duas sílabas semelhantes, em adjacência silábica, pode ser verificada também noutros casos concretos como:

 bondade + oso    >     bondadoso     >    bondoso

caridade + oso    >     caridadoso     >    caridoso

cândido + ura     >     candidura       >    candura

idade + oso        >     idadoso           >    idoso

    O fenómeno haplológico também ocorre noutras línguas, como é o caso da palavra inglesa probably:

 probable + ly     >     probablely       >    probably

    Encerro este texto, desejando aos meus dignitários leitores umas boas férias de verão (se for esse o caso), fazendo votos de que os próximos dias tragam a paz para a Ucrânia e Rússia, em vez de atitudes maldadosas (i.e. maldosas).

 

 

 


03/04/2022

Sandes, Sande, Sanduíche?


 

Sandes, Sande, Sanduíche?

 

    A palavra sande tem suscitado dúvidas recorrentes em todos aqueles que gostam de fazer um bom uso da língua portuguesa. Para outros, no entanto, a questão nem se coloca pois o que importa é que o pão esteja fresco e o presunto venha em quantidades generosas.

    Devemos pedir uma sande, uma sandes ou uma sanduíche?

   A palavra sanduíche resulta de um aportuguesamento do vocábulo inglês sandwich. Através de um processo de truncação, a palavra foi reduzida a sand/sandes, tal como aconteceu, por exemplo, com a passagem de metropolitano a metro.

   Não é necessária uma abordagem estatística exaustiva para concluir que, no singular, a forma sandes se sobrepõe a sande no uso dial da língua lusa. No entanto, resulta numa irrefutabilidade a conclusão de que a forma sandes decorre da flexão regular de sande na sua variação em número, ou seja: uma sande, duas sandes. É esta a perspetiva normativista da questão, na base da qual somos levados a concluir que não se pode pedir uma sandes, mas uma sande.

   Acontece que, em língua alguma, os seus utilizadores se sentem reféns da inflexibilidade normativa quando falam ou escrevem. Aliás, alguns dicionários já lexicalizaram o plural da palavra no seu uso singularizado.

   Normas linguísticas à parte, a perspetiva descritivista dos especialistas diz-nos que o uso da forma sandes se consagrou nos mais variados contextos geográficos do país, pelo que de nada vale ao ímpeto purista da língua continuar a contrariar o que não é contrariável.

   Curiosidade:

   A palavra sandwich, enquanto epónimo, tem origens lendárias. Acredita-se que John Montagu, Conde da cidade britânica de Sandwich (séc. XVIII), era viciado em jogos de cartas. Envolvia-se tão entusiasticamente nas cartadas que se recusava suspendê-las no momento das suas refeições. Como forma de saciar o estômago sem abandonar a mesa de jogo, ordenava que lhe trouxessem um naco de carne assada entalada em duas fatias de pão. De quando em vez, variava o recheio com outras opções nutritivas. Os seus parceiros de jogo, ao constatar a natureza nutrícia e pragmática da bucha, trataram de a popularizar junto dos clubes londrinos da época.

21/03/2022

Gastão Cruz, para sempre


 

Faleceu, hoje, mais um talento da literatura portuguesa e, com ele, parte também um homem culto, um académico, um ser humano generoso.

Poeta, ensaísta e tradutor, entrou para o grande palco das belas letras lusitanas no ano de 1961 e, de lá para cá, não mais parou de bem escrever.

Agora, a morte percutiva "devolve ao chão as folhas e os ossos", mas preserva para o sempre o seu precioso estro.

Condolências à família e amigos.

Obrigado!