11/06/2016

Arranja-me um emprego



Há dias, uma colega e amiga com quem partilho a mesma casa de profissão encontrou um livro no baú de família e fez o favor de mo dar a conhecer. Não, não se trata de uma obra literária, se bem que as capas alindadas a couro castanho o façam parecer. “NOVO SECRETARIO UNIVERSAL, COMMERCIAL PORTUGUEZ, ou Methodo de Escrever Toda a Especie de Cartas”: assim se intitula a 16.ª edução da obra, compilada pelo M. A. S. no ano de 1888. Dada à estampa por Francisco José Freire em 1702 (ao que julgo saber), rapidamente se tornou num êxito de vendas. Nela, o autor estrutura variadíssimos modelos de cartas para outros tantos propósitos do dia-a-dia. Dir-se-ia que o faz com arte e zelo protocolar.
Logo me saltou à vista o brio epistolar da época. O Barroco dominava as boas letras, com a sua linguagem espaventosa, ritmada (quase musical), rebuscada, requintada e metafórica. Salienta-se o estilo sentencioso e extremamente moralista, a tender claramente para um tardio Rococó português.
É precisamente esta “decência social”, quase doutrinal, que sublinho, claro está, acrescida à arte de bem escrever. São disso exemplos a “minuta” de uma filha que pede à mãe o seu consentimento para namorar com determinado rapaz ou alguns parágrafos de condolências pelo falecimento de um familiar de alguém que não nos é indiferente. Poderíamos ir por aí, mas prefiro transcrever da dita obra um modelo bem curioso. Ora vejamos:

Um jovem douctor pedindo um emprego
a um deputado do seu circulo
Ill.mo Sr.
Sem mais títulos para merecer a benevolencia de V. S.a além dos que possuo para fazer parte da familia que mais contribuira para o seu triumpho, nas ultimas eleições para deputado, e depois de ter o prazer de felicita-lo por tão dignamente representar o circulo que o elegeu, permita-me V. S.a que o importune patenteando-lhe a apoquentada situação em que me encontro, bem como a de meus paes.
Por certo V. S.a não ignora o desabrido inverno (ou outro motivo), que este anno tivemos, o qual devastou todas as colheitas, sendo, infelizmente, a lavoura de meu pae, quem mais padeceu com esta calamidade, isto junto ás avultadas despezas necessárias para eu completar com bom exito a minha formatura, arruinou a nossa pequena fortuna, reduzindo meu bom pae quasi á miseria!
Tornou-se-me necessario abusar talvez demasiado da attenção de V. S.a para se compenetrar do quanto me é necessaria toda a valiosa protecção que me possa dispensar, de eu obter uma collocação qualquer em que comece a minha carreira e possa ao mesmo tempo cumprir o sagrado dever de ajudar os meus queridos paes, que tanto se teem sacrificado por minha causa.
Informaram-me que no meu concelho de… ha uma vagatura de administrador (ou outro qualquer logar), e ainda que me fôsse bastante penoso separar-me de minha familia, quasi no ultimo quartel de sua existencia, agradeceria em extremo qualquer collocação alcançada pela poderosa influencia de V. S.a
 Pedindo mil perdões pela liberdade que tomei de importunar a V. S.a, e agradecendo desde já todo o obsequio que me possa dispensar, sou com toda a consideração e respeito.
De V. S.a, etc.

Hoje já não se escreve assim. Não obstante estar, agora, o estilo barroco já moribundo, pouco mudou no que ao estado da arte da “cunha” diz respeito. Esta encontra-se de boa saúde e “recomenda-se”. A via epistolar faleceu para dar lugar ao modo rápido do empurrãozinho através de palavras e frases curtas enviadas na hora, via sms ou e_mail.
Cunha será sempre cunha, mas, a terem que a meter, ao menos que o façam com arte.

4 comentários:

  1. A cunha já não é o que era. Alcídio, se alguém me pedisse emprego com a pinta com que o fazia o Francisco José Freire, não pensaria duas vezes em fazer-lhe a vontade. Gostei!

    ResponderEliminar
  2. Alcídio, tu que és político (embora eu não acredite que o sejas, pois és demasiado honesto para isso), se tiveres uma vacatura num qualquer conselho de administração, não te esqueças de mim. Se for preciso, escrevo o meu currículo num estilo romântico.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Ó pá, antes de mais, desculpa, pois só agora é que resolvi visitar os comentários em spam e encontrei lá o teu (já lá vai quase um ano). Sejas tu quem fores, o teu comentário merece um "gosto" gargalhado da minha parte. Concordo contigo no que a currículos diz respeito. Por vias travessas, um toque de romantismo nos ditos pode franquear portas que a muitos se mostram hermeticamente teimosas.

      Eliminar
  3. Letícia, uma seguidora atenta, sempre pronta a comentar o que escrevo! Já sei a quem devo recorrer, caso fique desempregado. Prometo superar-me na redação da minha carta de apresentação.

    ResponderEliminar