Em 1970, Chico Buarque comete um corajoso
crime de lesa-ditadura. O cantor-poeta (ou poeta-cantor, como prefiro
chamar-lhe) exortava então «o grito contido» e soltava a pauta sambada da
“Grândola Vila Morena” em versão da Terra de Vera Cruz. Quem não gostou do que
ouviu foi Emílio Médici. Incomodado no seu sono, o ditador vê anunciado um «amanhã
que seria outro dia, o de esbanjar poesia». Por cá, Américo Tomás franzia o
sobrolho solidário para com o seu homólogo.
— Pois, pá, “apesar de ti, amanhã vai ser
outro dia”. Ou melhor, apesar de vós.
Ferido no seu orgulho, o general mandante impede
a composição musical de seguir o seu rumo mediático, ditame que viria a perecer
com o perecimento do assento do próprio, oito anos mais tarde.
Aproveitando o embalo revolucionário de então,
Chico irmana o seu grito ao brado lusitano, germinado em Abril, e atira para
este lado do Atlântico as suas felicitações, cantadas em forma de epístola. “Tanto
mar" de seu nome, o tema logo se viu igualmente censurado pela ditadura do
seu país:
Sei
que está em festa, pá Eu
queria estar na festa, pá
Fico contente Com a tua gente
E enquanto estou ausente E colher pessoalmente
Guarda um cravo para mim Uma flor no teu jardim
Fico contente Com a tua gente
E enquanto estou ausente E colher pessoalmente
Guarda um cravo para mim Uma flor no teu jardim
Sei que
há léguas a nos separar Lá faz
primavera, pá
Tanto mar, tanto mar Cá estou doente
Sei, também, que é preciso, pá Manda urgentemente
Navegar, navegar Algum cheirinho de alecrim
Tanto mar, tanto mar Cá estou doente
Sei, também, que é preciso, pá Manda urgentemente
Navegar, navegar Algum cheirinho de alecrim
O “pá” de lá mostra-se
feliz pelo “pá” de cá e, ao mesmo tempo, lamenta não poder partilhar desse
contentamento. Em jeito de desespero, pede-lhe que estenda o jardim de Abril ao
seu país, onde se vê incapaz de o granjear sozinho.
Entretanto, o
carioca Ernesto
Geisel toma o poder e deixa no ar o anunciado cheirinho a alecrim, já enviado
pelos capitães de Abril, a pedido do poeta-cantor. PREC por cá, PREC por lá,
a festa vai, entretanto, esmorecendo e, já lânguida, o “pá” de lá refaz a
missiva ao seu camarada lusitano, numa segunda versão, gravada em 1976:
Foi bonita a festa, pá Já
murcharam tua festa, pá
Fiquei contente Mas, certamente
'Inda guardo renitente Esqueceram uma semente
Fiquei contente Mas, certamente
'Inda guardo renitente Esqueceram uma semente
Um velho cravo
para mim Nalgum
canto de jardim
Sei que há léguas a nos separar Canta a Primavera, pá
Tanto mar, tanto mar Cá estou carente
Sei também como é preciso, pá Manda novamente
Navegar, navegar Algum cheirinho de alecrim
Sei que há léguas a nos separar Canta a Primavera, pá
Tanto mar, tanto mar Cá estou carente
Sei também como é preciso, pá Manda novamente
Navegar, navegar Algum cheirinho de alecrim
Chico reescreve assim “Tanto mar” num registo póstumo, lembrando
a festa acabada que foi bonita enquanto durou. Quase não deu para o foguetório,
tão-pouco para a apanha das canas. Pede mais alecrim, mas do lado de cá ele já escasseava
e a semente parecia não se ver esquecida em canto algum do jardim, pois que o
vampirismo político-partidário não brinca em serviço quando se trata de segurar
aquilo que julga seu.
Hoje é 25 de Abril, pá, e não sei se cante ou se chore. Sei que a palavra “alecrim” é tida no Brasil como proveniente de “alegria” e, por isso, agora percebo porque mo pediste insistentemente. Mas felicidade é coisa que por aqui não grassa e a que há só está ao alcance dos mesmos de sempre. Escrevo-te agora porque me apetece; porque sim; porque sei que ainda estás disposto a cantar:
Hoje é 25 de Abril, pá, e não sei se cante ou se chore. Sei que a palavra “alecrim” é tida no Brasil como proveniente de “alegria” e, por isso, agora percebo porque mo pediste insistentemente. Mas felicidade é coisa que por aqui não grassa e a que há só está ao alcance dos mesmos de sempre. Escrevo-te agora porque me apetece; porque sim; porque sei que ainda estás disposto a cantar:
Já vai longe a nossa festa, pá, Já não sonho como sonhava, pá,
Era evidente, E
certamente
O cravo foge da gente Trituraram
uma semente
Para onde? Ai Deus e u é? E
secaram o jardim.
Tanto mar, tanto mar Em segredo latente
Sei também como é preciso, pá, Guardo em mim outra semente
Navegar, navegar… E algum cheirinho de alecrim.
Muito bom, este post! Concordo: Chico Buarque é um poeta que também canta. E que bem que canta! Encanta!
ResponderEliminarQue post tão bom, pá!
ResponderEliminar:-)
Abraço, Alcidio
Viva, Alexandre! Sei que guardas em ti não um cheirinho de alecrim, mas uma plantação dele. Espalha-o por quem lhe saiba dar o devido uso e continua a exortar Abril, não deixando que os conformados vivam as suas vidas apenas cantando e rindo.
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