25/04/2015

Já murcharam a tua festa, pá.



    Em 1970, Chico Buarque comete um corajoso crime de lesa-ditadura. O cantor-poeta (ou poeta-cantor, como prefiro chamar-lhe) exortava então «o grito contido» e soltava a pauta sambada da “Grândola Vila Morena” em versão da Terra de Vera Cruz. Quem não gostou do que ouviu foi Emílio Médici. Incomodado no seu sono, o ditador vê anunciado um «amanhã que seria outro dia, o de esbanjar poesia». Por cá, Américo Tomás franzia o sobrolho solidário para com o seu homólogo.

    — Pois, pá, “apesar de ti, amanhã vai ser outro dia”. Ou melhor, apesar de vós.

    Ferido no seu orgulho, o general mandante impede a composição musical de seguir o seu rumo mediático, ditame que viria a perecer com o perecimento do assento do próprio, oito anos mais tarde.

    Aproveitando o embalo revolucionário de então, Chico irmana o seu grito ao brado lusitano, germinado em Abril, e atira para este lado do Atlântico as suas felicitações, cantadas em forma de epístola. “Tanto mar" de seu nome, o tema logo se viu igualmente censurado pela ditadura do seu país:

Sei que está em festa, pá                     Eu queria estar na festa, pá
Fico contente                                       Com a tua gente
E enquanto estou ausente                    E colher pessoalmente
Guarda um cravo para mim                   Uma flor no teu jardim
Sei que há léguas a nos separar           Lá faz primavera, pá
Tanto mar, tanto mar                           Cá estou doente
Sei, também, que é preciso, pá            Manda urgentemente
Navegar, navegar                                Algum cheirinho de alecrim


    O “pá” de lá mostra-se feliz pelo “pá” de cá e, ao mesmo tempo, lamenta não poder partilhar desse contentamento. Em jeito de desespero, pede-lhe que estenda o jardim de Abril ao seu país, onde se vê incapaz de o granjear sozinho.

    Entretanto, o carioca Ernesto Geisel toma o poder e deixa no ar o anunciado cheirinho a alecrim, já enviado pelos capitães de Abril, a pedido do poeta-cantor. PREC por cá, PREC por lá, a festa vai, entretanto, esmorecendo e, já lânguida, o “pá” de lá refaz a missiva ao seu camarada lusitano, numa segunda versão, gravada em 1976:
Foi bonita a festa, pá                           Já murcharam tua festa, pá
Fiquei contente                                    Mas, certamente
'Inda guardo renitente                           Esqueceram uma semente
Um velho cravo para mim                     Nalgum canto de jardim

Sei que há léguas a nos separar           Canta a Primavera, pá
Tanto mar, tanto mar                           Cá estou carente
Sei também como é preciso, pá           Manda novamente
Navegar, navegar                                Algum cheirinho de alecrim

    Chico reescreve assim “Tanto mar” num registo póstumo, lembrando a festa acabada que foi bonita enquanto durou. Quase não deu para o foguetório, tão-pouco para a apanha das canas. Pede mais alecrim, mas do lado de cá ele já escasseava e a semente parecia não se ver esquecida em canto algum do jardim, pois que o vampirismo político-partidário não brinca em serviço quando se trata de segurar aquilo que julga seu.

    Hoje é 25 de Abril, pá, e não sei se cante ou se chore. Sei que a palavra “alecrim” é tida no Brasil como proveniente de “alegria” e, por isso, agora percebo porque mo pediste insistentemente. Mas felicidade é coisa que por aqui não grassa e a que há só está ao alcance dos mesmos de sempre. Escrevo-te agora porque me apetece; porque sim; porque sei que ainda estás disposto a cantar:

Já vai longe a nossa festa, pá,             Já não sonho como sonhava, pá,
Era evidente,                                       E certamente
O cravo foge da gente                         Trituraram uma semente
Para onde? Ai Deus e u é?                   E secaram o jardim.

Sei que há léguas a nos separar           Deixa que te diga, pá,
Tanto mar, tanto mar                            Em segredo latente
Sei também como é preciso, pá,           Guardo em mim outra semente
Navegar, navegar…                             E algum cheirinho de alecrim.





3 comentários:

  1. Muito bom, este post! Concordo: Chico Buarque é um poeta que também canta. E que bem que canta! Encanta!

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  2. Que post tão bom, pá!
    :-)

    Abraço, Alcidio

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    1. Viva, Alexandre! Sei que guardas em ti não um cheirinho de alecrim, mas uma plantação dele. Espalha-o por quem lhe saiba dar o devido uso e continua a exortar Abril, não deixando que os conformados vivam as suas vidas apenas cantando e rindo.

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