Aquando da Medalha de Mérito Cultural atribuída a Herman José, o comediante disse o seguinte:
«A liberdade tem que ser regada».
Concordo com o espírito da afirmação, mas não deixo de registar a derrapagem linguística do “tem que ser”.
Apesar de muitos
recorrerem ao uso indiscriminado das construções “ter que” e “ter de”, o que é
certo é que o alcance semântico de cada uma delas é diferente, senão vejamos:
1 – Quando queremos
expressar um desejo ou, como neste caso concreto, uma obrigação, uma
necessidade ou um dever relativamente a algo (a obrigação ou o dever de
regarmos a liberdade para a manter saudável), a construção correta é “A liberdade tem de ser regada”. O verbo ter ocorre aqui como verbo auxiliar de
uma conjugação perifrástica;
2 – Em direção semântica distinta, segue a construção ter que, onde o ter não é considerado um auxiliar, mas um verbo principal, com significação própria: possuir ou usufruir, consoante o contexto verbal (ou cotexto, no dizer dos filósofos da linguagem de Oxford). É nesta esfera conceptual que se enquadram os sintagmas substantivos que fazer e que contar:
a) "Ter que fazer” (ter muito trabalho a seu cargo);
b) “Ter que contar” (possuir peripécias para contar. Veja-se o que escreveu Almeida Garrett: «Lá vem a Nau Catrineta / que tem muito que contar!», onde o verbo assume o seu significado pleno);
Vejamos agora duas frases que, enganosamente, apontam para uma mesmidade de sentido, mas que não o são:
c) “O mendigo não tem que comer”;
d) “O mendigo não tem de comer”.
Em c), estamos a falar de um mendigo que
comeria se tivesse algum alimento que lhe servisse de refeição. Já em d),
referimo-nos a um mendigo que, embora tenha alimentos disponíveis, não come,
porque não é obrigado a fazê-lo.
Bom, agora tenho de terminar este artigo que já vai longo e tenho mais que fazer.
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