24/11/2025

DITADOS MUTANTES

 

Desta vez, trago aqui três ditados que muitos de nós, com maior ou menor frequência, já proferimos no uso dial da nossa benquista língua portuguesa.

Ao fazê-lo, nem sempre equacionamos o seu alcance semântico, já que este faz bom sentido da forma como nos foi transmitido e, por isso, não vemos qualquer necessidade de o questionar.

A verdade é que, no dizer de quem gosta de sacholar a essência da matéria linguística, o significado dos referidos “aforismos” já foi outro em tempos mais idos.

Mas passemos então à análise de cada um deles;

 

1 - Esse rapaz não consegue estar parado, parece que tem bichos carpinteiros

 

Este até já me foi dedicado, amiúde, quando era menino. É evidente que o ditado assenta que nem uma luva àquelas pessoas que não conseguem estar quedas e sossegadas por muito tempo (hiperativos, para ser mais preciso). Mas porquê “carpinteiros”? Haverá bichos com tal ofício?! Bom, quem já viu algum animalejo de serrote na mão e lápis entalado na orelha que traga até mim evidências de tão estranha experiência. Agora a sério, de facto, existem escaravelhos que se alimentam de madeira, hábito que até lhes mereceu o nome popular de bichos-carpinteiros. Assim até faz muito sentido, pois a pessoa irrequieta dá a ideia de que tem este tipo de bicheza a roê-lo por dentro.

No entanto, e em boa verdade, este ditado já teve uma configuração lexical distinta: “esse rapaz não consegue estar parado, parece que tem bichos no corpo inteiro.”;

 

2 –Quem não tem cão, caça com gato”

Diz-se de um caçador que, não tendo um cão de caça, se vê obrigado a remediar a situação desvantajosa, caçando com um gato que, como todos bem sabemos, não está geneticamente talhado para tais funções. Este ditado resulta, no entanto, de uma corruptela de um outro mais antigo, a saber: “quem não tem cão caça como o gato”. A lógica deste aforismo assenta no facto de que, sem a ajuda preciosa de um Boby de faro aguçado, resta ao caçador caçar sozinho, à imagem do que é feito pelos Tarecos no seu dia-a-dia;

 

3 – “Quem tem boca vai a Roma”

Ao que parece, o ditado original seria “Quem tem boca vaia Roma”, conferindo a legitimidade de vaiar Roma a todos quantos não se conformavam com os excessos e erros de governança dos imperadores romanos da antiguidade. Hoje em dia, por um processo que eu classificaria como cacofonia invertida, a máxima perdeu o seu sentido original, para significar que é possível chegar em qualquer sítio, bastando perguntar, a quem nos aparece pelo caminho, qual é a melhor direção a tomar;

 

4 – “São ossos do ofício

 

Na sua originalidade, esta máxima/expressão era colada a quem, no exercício das suas funções laborais, vivia momentos de enfastiamento por nada ter que fazer. Nessa aceção semântica, a configuração seria esta: “são ócios do ofício”. No entanto, a construção atual (“são ossos do ofício”) remete-nos para um sentido praticamente antonímico, na medida em que evoca a necessidade inexorável de se dar cumprimento a tarefas laborais mais difíceis e mais trabalhosas.

Concluindo, e uma vez que as línguas gozam de um constante metamorfismo, seja ele de natureza diacrónica, diatópica, diafásica ou diastrática, aceitemos como válida a configuração atual dos referidos ditados e os sentidos que lhes são atribuídos pelo senso comum, com a permissividade camoniana que o fenómeno demanda: “Todo o mundo é composto de mudança / Tomando sempre novas qualidades”.

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