23/10/2016

You Want it Darker, o poema; Leonard Cohen, o poeta





   Sou um dos que apreciam Cohen em quantidades moderadas. Não porque não sinta uma vontade constante de o ouvir, mas porque não o quero banalizar, fenómeno descarinhoso que resulta da exposição massacrante que as rádios atuais fazem dos bons, como se de quaisquer se tratasse.

   É um músico poeta ou um poeta músico? Que avance quem tenha a resposta. No entanto, faleça intelectualmente quem afirme que Abrunhosa é o Leonard português.

   A sublimação literária dos músicos, adensada pela última decisão da Academia Sueca, abre um precedente para prémios futuros e potencia a emergência de uma injustiça retroativa. Um Nobel póstumo para músicos poetas já idos desta vida passa a entrar, em paridade com os mestres das belas letras, nas fileiras literárias das predisposições canonizadoras suecas (para memória futura).

   Dos vivos, Leonad Cohen não é “pior” que Dylan, não senhor. Não estão em causa os estilos vocálicos de um ou de outro. Tanto a voz “preguiçosa” e solavancada do estadunidense como o taciturno e sousafónico timbre do canadense fazem as delícias de qualquer tímpano de bom gosto. Refiro-me essencialmente ao poder expressivo e figurativo das suas composições literárias. Se os dizeres de Dylan tiveram o mérito de mudar o estado de coisas do devir ocidental, as investidas poéticas de Cohen desarrumam a nossa casa existencial, ganhando contornos ontológicos muito próximos da reflexão filosófica mundial.

   Que me desculpe quem comigo não concorde, mas… enfim, esta é a minha opinião, que também já foi melhor.

2 comentários:

  1. Dylan – que globalmente continua ser o meu cantor preferido – tem uma produção mais desigual e, nos últimos tempos, bastante apagada.
    Cohen, pelo contrário, teima em continuar a fazer obras-primas. Há nele uma teimosia, uma densidade e uma autenticidade especiais, em cada palavra, em cada refrão. E uma amargura gentil de que só ele é capaz.
    Não é possível meter Abrunhosa neste campeonato (acho que até é ofensivo para o próprio). Tem jeito, mas falta-lhe (literariamente falando) aquilo que nos falta a quase todos: a capacidade de dar às coisas simples o estatuto de eternidade. Que Cohen e Dylan têm.
    Mas é só a minha opinião. jmg

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  2. «Uma amargura gentil»: paradoxo delicioso, Gonçalves! É a este tipo de linguagem figurativa que me refiro quando falo do poder expressivo dos vates cantores. O tal «"nada" que é tudo» que, como bem dizes, concede a imortalidade apenas aos fora de série.
    Grande abraço.

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