08/12/2015

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor




Tal como Herberto Helder, também José Fontinhas recusava a exposição mediática. Talentos como o de Eugénio de Andrade não procuram as luzes, ao contrário das traças. São as luzes que os procuram e os não “deixam em paz”. Percebo as razões que sustentam tais atitudes, mas escritores de tão elevado calibre literário não podem subtrair-nos o prazer de os ler e os citar.
Porque há por aí tantas “traças” arvoradas em génios das letras, que se atiram ao primeiro holofote que lhes aparece, não contribuirei para que os bons, aqueles que nasceram verdadeiramente para isto, fiquem sem o merecido reconhecimento.
Deixo aqui um dos poemas mais bonitos escritos em Português. Um poema intenso que o autor reduziu a um título “vulgar” e de curta extensão: “Adeus”.

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras
e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor…,
já se não passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.

Eugénio de Andrade, in “Poesia e Prosa” 

2 comentários:

  1. Bonito! Os poetas são gente que tudo vê. Parabéns pelo blogue, Alcídio.

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  2. Obrigado. Conto com os seus comentários.

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