02/09/2015

Língua de bigode



As línguas com flexão de género refletem a tendência machista de comunidades de matriz secularmente patriarcal. Se tal propensão deve ser combatida e banida da sociedade atual, não implica tal pressuposto que o mesmo se faça em relação à estrutura gramatical dessas línguas (a meu ver).
Muitos são os exemplos do efeito de contágio machista na língua portuguesa, desde logo na predominância do masculino em géneros não marcados no enunciado. Vejamos, pois, alguns casos concretos de interferência (ou pseudo-interferência) ideologia patriarcal na nossa gramática:

a)    Concordância masculina com pronomes de género indefinido:

(1)  Perguntei por alguém que tivesse sido abordado
(2)  Não vi ninguém agradado com a palestra
(3)  Nunca se é completamente sábio

b)    Generalização masculina de palavras que condensam nomes de géneros diferentes:

(4)  Está aberto o concurso de educadores e professores (incomodativo se torna o facto de sabemos que mais de 90% dos “educadores” são mulheres)

c)    Pronominalização masculina na substituição gramatical de nomes de diferentes géneros:

(5)  Acabei de ver a tua mãe e o teu irmão. Eles passam todos os dias por mim

d)    Referência a nacionalidades:

(6)  O português gosta de fado

e)    Masculinização dos adjetivos em concordância com nomes de géneros diferentes (ou géneros complexos):

(7) A Maria, a Joana, a Margarida e o Tomé estavam lindos (importa esclarecer que estes exemplos não configuram uma interferência ideológica, mas um caso de evolução fonética. O latim dispunha de três géneros – masculino, feminino e neutro – com terminações frequentes em ‑us, ‑a e -um, respetivamente. Os casos de géneros complexos, condensadores de sequências de nomes de géneros diferentes, eram marcados pelo género neutro -um. Com a evolução fonética, as consoantes finais daquelas desinências foram caindo, provocando a ambiguidade –u, -a e –u, obrigando à fusão do masculino e do neutro. Assim, a desinência atual –o conserva em si o género masculino e neutro, reservando-se a desinência –a exclusivamente para os casos de concordância no feminino.)

Termino como comecei, deixando aqui uma questão muito concreta, bem reveladora da correlação machista entre sociedade e língua:


(8)  A primeira-dama esteve na cerimónia (suponhamos que, em vez de um Presidente da República, tínhamos uma Presidente da República e que era casada. Que designação protocolar seria dada ao seu marido? Primeiro-cavalheiro? Não me parece. A língua não está preparada para isso, pois não dispõe de qualquer palavra para tal referente.)

5 comentários:

  1. Dei com este blogue por acaso e gostei. Aborda um tema que me é muito caro. Mais: não é um blogue para encher chouriços, pois pelo que vejo publica pouco, mas o que publica tem um cunho pessoal, uma opinião académica.
    Pessoalmente, estou farto de blogues que se limitam ao copy/past e se atulham de posts sem critério, como se não houvesse amanhã.
    Parabéns ao autor, com uma sugestão: publique mais sobre autores actuais, pois há-os com muito valor por aí.

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    1. Obrigado pelas suas palavras, com a promessa de que dedicarei mais atenção aos autores emergentes de língua portuguesa.

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  2. Pessoalmente, já havia pensado inúmeras vezes nesta particularidade da nossa língua.
    De facto, para acentuar este aspeto há a referir que os estudiosos da língua eram predominantemente, para não dizer, apenas, do género masculino. Será que um dia se vai virar a página?

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    1. Tal como o acesso à produção literária, uma exclusividade ancestral dos homens. Poucas foram as mulheres (por razões muito diversas, mas essencialmente por puro machismo) que puderam deixar o seu talento estampado em livro. É o mundo que temos, Manuela. Aliás, era o mundo que tínhamos, estou em crer.

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    2. Claro que muita coisa mudou. Contudo, a meu ver, muito há ainda que fazer para podermos afirmar que "era o mundo que tínhamos". Parafraseando António Gedeão: ".... sempre que o "homem" sonha o mundo pula e avança como bola colorida entre as mãos de uma criança", esta nem sempre é a realidade, nomeadamente para as mulheres.
      Nestes versos, (que eu tanto gosto) a Humanidade aparece mais uma vez "de bigode"como em tantos outros.
      Há que mudar os tempos e as vontades!!!

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