12/07/2015

Ainda sobre o AO90

Reiterando as convicções que veiculei no artigo anterior (“AO90: a questão não é estar contra ou a favor”) e rejeitando a artificialidade das cavadas trincheiras do “pró” e do “anti”, convido os meus leitores a ler as palavras do jornalista e colaborador do Ciberdúvidas José Mário Costa, não para sustentar este ou aquele lado da polémica (insisto, não embarco em guerras encomendadas), mas para se perceber como o fundamentalismo pode incubar ÓDIOS de estimação pela opinião contrária.

Pela natureza extensa do artigo, deixo aqui apenas alguns excertos que nele considero mais relevantes, apensando-lhe uma ligação para o texto integral.



«Depoimento apresentado pelo jornalista José Mário Costa na audição parlamentar promovida pelo Grupo de Trabalho para Acompanhamento da Aplicação do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, da Comissão de Educação, Ciência e Cultura da Assembleia da República Portuguesa, no dia 4 de abril de 2013.

 Por estes dias, houve entre nós algum contentamento pelo facto, bastante saudável, de o Brasil adiar a entrada em vigor do Acordo Ortográfico (AO 90) para 31 de Dezembro de 2015, ou seja, para 2016. Isto, em si, é uma boa notícia, porque o disparate que por aí vai à conta do dito é tal, que bem merece que se adie, de preferência sine die.
A presidente Dilma [Rousseff] adiou para 2016 a entrada em vigor do Acordo Ortográfico no Brasil (…).
No Brasil, tratava-se fundamentalmente de sacrificar o trema e o acento agudo em meia dúzia de casos. E ninguém se resignava às regras absurdas de emprego do hífen... Com isso, bastou o abaixo-assinado de uns 20 mil cidadãos para se adiar a aplicação de uma coisa trapalhona denominada Acordo Ortográfico (AO). Os políticos ouviram a reclamação, estudaram-na e assumiram-na, e a sra. Rousseff decidiu.
O Brasil terminantemente recusou o nosso audacioso “acordo ortográfico”.
O Acordo Ortográfico está em causa. Instituições e publicações há que o aplicam; outras, que o rejeitam. O grande público contesta-o, e a esmagadora maioria dos cidadãos não consegue compreender o que se está a tentar fazer à língua portuguesa.
O Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP), editado unilateralmente no Brasil em 2009 (o que é um absurdo, porque o AO 90 prometeu, sem nunca cumprir, um “vocabulário unificado” comum a todos os países de língua oficial portuguesa)…

 As frases supracitadas ilustram o que ainda se vai publicando à volta do Acordo Ortográfico, 23 anos depois da sua aprovação pelos então sete países da CPLP, 12 anos depois da sua ratificação pela Assembleia da República e decorridos que estão três anos da sua entrada em vigor, oficialmente, em Portugal: inverdades sucessivas e uma desinformação que nem é exclusiva dos mais acirrados oponentes da atual reforma do português escrito.
Lastimável, no mínimo. Especialmente se umas e outra – as inverdades e a desinformação – colhem também os que, por dever de ofício e dos valores profissionais nele inerentes, sacrificam o rigor e a seriedade informativa ao vale-tudo deste tipo de campanhas.
Primeira inverdade, por sinal até a mais recente: o Brasil adiou a aplicação do Acordo Ortográfico por via das críticas internas e respetivas debilidades. Ora, o que aconteceu foi, tão-só, o prolongamento, até ao final de 2015, do período de adaptação à substituição definitiva, de resto já quase plenamente conseguida, das regras ortográficas anteriormente em vigor no Brasil, que datavam de 1943.
Ou seja: só daqui a três anos deixa de poder usar-se, no plano público, a ortografia que era seguida no Brasil antes da adoção do AO. Até lá, tal como acontece em Portugal – cujo período de transição, de seis anos, quase coincide agora com o determinado pelo governo brasileiro (precisamente no intuito de se alinhar com Portugal, como foi justificado pela própria autora do projeto de lei que prolongou por mais três anos o período de transição no Brasil, a senadora Ana Amélia Lemos) –, a ortografia anterior continua a poder ser seguida por quem assim entender fazê-lo no seu uso pessoal. E, portanto, sem pôr minimamente em causa o que está ratificado, promulgado (em 30 de setembro de 2008, por decreto do então presidente Luiz Inácio “Lula” da Silva) e efetivamente seguido, já, nos mais variados setores da sociedade brasileira.
No essencial, nada se altera, pois: a adoção oficial do Acordo Ortográfico no Brasil foi em janeiro de 2009, com as novas regras desde então seguidas pelos organismos e publicações oficiais, federais e estaduais, no ensino (todos os livros didáticos se regem pela nova norma) e na generalidade das editoras e dos órgãos de comunicação social do país. Ou seja: o que foi «adiado» no Brasil não foi a aplicação do Acordo Ortográfico – mas o prazo-limite da obrigatoriedade legal de todos seguirem as novas regras. Exatamente como estamos em Portugal.
Por via deste período de transição ainda por mais três anos, tanto em Portugal como no Brasil, as duas normas mantêm-se obviamente em paralelo: a oficial, conforme já o Acordo Ortográfico – repete-se: seguida maioritariamente em ambos os países, nomeadamente no ensino, nos organismos e publicações oficiais, na generalidade dos média e das editoras, etc., etc. – e as anteriores ortografias, a brasileira e a portuguesa.
Extrapolar daqui que a língua portuguesa passou a ter, agora, não duas, mas três ortografias não é só demagogia. Evidencia também muito do tipo de (alguma) rejeição de quantos recusam, pura e simplesmente, este ou qualquer outro acordo ortográfico: «Fundamentalismo purista de quem não quer mudar, ponto final e parágrafo!»

[…]

No que nos diz respeito, o que se divulgou foi sempre, e só, quem, do outro lado do Atlântico, favorece a campanha do “anti”, do lado de cá. Por isso, e nomeadamente no jornal que se constituiu como órgão oficial e tribuna permanente dos que rejeitam liminarmente este ou qualquer acordo ortográfico, nunca houve notícias em sentido contrário: desde a discordância da Academia Brasileira de Letras(13) até às declarações de reputados académicos e linguistas brasileiros, como Arnaldo Niskier ou Carlos Alberto Faraco, sobre o prolongamento do período de transição.
Segunda inverdade: o que se diaboliza sobre o hífen. Ora, se há parte desta reforma ortográfica mais bem resolvida – o que não quer dizer que não persistam incongruências e discrepâncias de critérios –, é precisamente neste capítulo do estabelecimento de regras para o uso do hífen, agora muito mais racionais e simplificadas.
Basta compararmos as particularidades quanto a palavras prefixadas, o que obrigava à consulta permanente de um prontuário. Fora todos os compostos e locuções entrados entretanto na língua, cuja sistematização, de tão complexa e variada, chegou a levar à publicação de um extenso guia específico só para o tratamento deste aspeto da ortografia, com mais de 20 mil palavras compostas.
Com o Acordo Ortográfico, as regras e os critérios para a hifenização ficaram pela primeira vez clarificados e sistematizados, não se comparando o que sobrou de exceções e casos mal resolvidos com a discricionariedade resultante da reforma anterior, de 1945.
Terceira inverdade, esta também de recente data: «Com o Acordo Ortográfico, aumenta o número de palavras que se escrevem de forma diferente.» É exatamente o oposto – como a seu devido tempo a tese em causa teve o imediato desmentido no mesmo jornal em que foi publicada e fica suficientemente demonstrado no ponto 6 do Parecer do ILTEC sobre a Aplicação do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, apresentado ao Grupo de Trabalho para Acompanhamento da Aplicação do Acordo Ortográfico, no âmbito da Comissão de Educação, Ciência e Cultura da Assembleia da República:
Quanto à contabilização da convergência de formas devido à aplicação do AOLP90 (…), podem tirar-se as seguintes conclusões:

•    convergem cerca de 5,5 vezes mais formas do que divergem (1230 formas que se escreviam de forma diferente passam a escrever-se de forma igual, 221 formas que se escreviam de forma igual divergem agora);
•    nos casos de convergência, contrariamente ao que tantas vezes se afirma, há um quase completo equilíbrio quanto à forma anterior que é adotada: em pouco mais de metade dos casos, a nova forma corresponde à antiga forma portuguesa; em pouco menos de metade, à brasileira;
•    mesmo quanto às sequências consonânticas analisadas na secção anterior deste texto, a razão da convergência é mais de duas vezes superior (573 convergências, 222 divergências, 1254 variantes).
E, no entanto, o que continua a prevalecer no ruído de fundo à volta da campanha contra o Acordo Ortográfico não é que, de facto, com ele, diminuiu o número de palavras com grafia diferente, mas o seu contrário.
A quarta inverdade tem que ver com a aplicação do Acordo Ortográfico entre nós.
A verdade é que, em Portugal, até à presente data – ou seja, a pouco mais de meio do período de adaptação às novas regras –, dos 10 periódicos com maior circulação no país, apenas dois (e das últimas posições da lista) seguem ainda a norma de 1945.
Ao conjunto dos media portugueses que adotaram já o Acordo Ortográfico, juntam-se SIC, RTP e TVI, além dos seguintes periódicos, numa lista necessariamente incompleta: Açoriano Oriental, Algarve Press, As Beiras, AutoSport, Barlavento,Blitz, Destak, Exame, Mundo Português, Caras, Lux, Nova Gente, Diário do Alentejo, Diário do Minho, Futebolista, Metro,Mística, Jornal de Letras, Ler, O Primeiro de Janeiro, OJE, entre outros.
Além da grande maioria da imprensa portuguesa, do aparelho de Estado, das principais instituições públicas e das instituições do ensino básico, secundário e universitário (a única exceção é a Faculdade de Letras de Lisboa, que permite ainda ambas as grafias), adotaram já, também, o Acordo Ortográfico as principais plataformas de informática e aplicações mais usadas, como as da Microsoft, e os portais mais consultados em Portugal, como o Sapo, a Wikipédia e o Google.
A quinta inverdade assenta na confusão – propositada – que se faz, sempre que se tecem argumentos sobre a rejeição ao Acordo Ortográfico, entre opinião publicada e opinião pública.
Se a primeira é facilmente quantificada – até pelo livre-trânsito do jornal que fez do Acordo Ortográfico a mãe de todos malefícios da língua portuguesa, bem mais preocupado com ele do que com a forma cada vez mais desleixada como é escrito, a ponto de ser essa a área mais vezes criticada pelos seus sucessivos provedores dos leitores –, fica bem mais nebulosa qualquer invocação à volta da dita “contestação” no «grande público» e pela «esmagadora maioria dos cidadãos».
Por isso, as notícias que correm só correm se e quando correm a favor da barricada do “anti”. Só um exemplo: o relevo que se deu à decisão de o Acordo Ortográfico ter deixado de ser aplicado no Centro Cultural de Belém – e nem uma linha sobre o paradoxo de, nesse mesmo Centro Cultural de Belém, o Acordo Ortográfico continuar a ser aplicado na Coleção Berardo e noutras exposições periódicas.
Sexta inverdade: o que ainda se vai lendo e ouvindo – até por setores não necessariamente hostis ao Acordo Ortográfico – de estarmos num processo de unificação da língua, numa confusão, deliberada ou por ignorância, do que verdadeiramente diz respeito à ortografia, que é, como sabemos, tão simplesmente, uma convenção sobre a forma de se grafarem as palavras.
Não obstante o que trata esta ou qualquer reforma ortográfica, e ela em nada colidir com a estrutura da língua, a verdade é que, por via desta quarta inverdade, se ouve e se lê de tudo. Até já se clamou pelo guilhotinamento de obras que seguem a ortografia sacrílega e se apostrofam de “inimigos da pátria” e “lesa-cultura” iniciativas editoriais que cumprem, simplesmente, o que se encontra oficialmente em vigor no país...
Nada de novo, afinal. Na sequência da primeira grande reforma ortográfica da língua portuguesa, de 1911, ficaram célebres as reações críticas de alguns dos seus mais acirrados oponentes. Fernando Pessoa recusou sempre em vida escrever “farmácia” ou “filosofia” sem os “ph”. E Teixeira de Pascoaes escreveu mesmo um texto antológico sobre o que se perdia com a substituição do “y” pelo “i” latino na palavra “abismo”. E havia ainda quem, um ano antes da entrada em vigor das novas regras depois da implantação da República, “imaginasse”, já, o que seria passar a escrever “fase”, em vez de “phase”: «Não nos parece uma palavra, parece-nos um esqueleto.»
Cem anos decorridos, também há quem considere que a palavra “afeto” deixou de ser o que era sem o “c”. Ou tenha passado a escrever “desenhador de casas” em vez de “arquiteto”, agora sem a consoante muda “c”. E entre as vozes que se ouviram, agora, contra a edição da obra completa do padre António Vieira conforme o Acordo Ortográfico, já agora, porque não se sugere editá-la como se escrevia no século XVII?... António Vieira não escrevia com as regras de 1945, longe disso.
 […]

In: https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/artigos/rubricas/acordo/desinformacao-e-inverdades-a-volta-do-acordo-ortografico/2768

2 comentários:

  1. Quer dizer, não é contra nem a favor do AO, mas escolhe logo alguém que é pública e notoriamente a favor. E com obra publicada. Como se costuma dizer, "está bem abelha".

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  2. Caro leitor RH, como procurei esclarecer no meu penúltimo artigo, entendo que a discussão sobre acordos ortográficos, desligada de um quadro mais amplo (vulgarmente conhecido como “Política do Idioma”), sem uma prévia clarificação do que pretendemos da nossa língua à escala planetária, não faz qualquer sentido.
    Um acordo ortográfico não pode constituir nunca um fim mas sempre um meio (caso se justifique, claro está). Se me perguntar se concordo com a entrada em vigor do AO90, da forma avulsa como o foi feita, dir-lhe-ei claramente que não. Mas a mesma opinião mantenho para o AO45 e reforço-a ainda mais em relação à despudorada Reforma Ortográfica de 1911.
    Se, numa determinada visão política para a Língua Portuguesa, bem construída e tecnicamente sustentada, tiver que emergir um acordo ortográfico, pois que seja. De outra forma, discordo.
    Relativamente ao artigo de opinião que publiquei em “Esta língua que me fez”, da autoria de José Mário Costa, apenas o fiz, não por uma concordância a priori com o AO90, mas por ajudar a subscrever um contraditório às inúmeras publicações contra o documento, grande parte delas destituídas de rigor e verdade. É que, pelo que leio diariamente, parece fazerem crer que enferma de criminalidade quem ousa defender o AO90. A tal ponto que, se alguém se atrever a fazê-lo num qualquer artigo, logo aí será açoutado verbalmente com uma boa centena de artigos castigadores. Só isso.

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