30/01/2015

Bocage – Um suicídio em banho-maria







   “Não havia necessidade”, diria o senso comum sobre tanto talento esbanjado em toalhas de mesa e guardanapos, suportes perecíveis de escritos improvisados sob o impulso libertino de um dos maiores vates do nosso património lusitano.
   Teve sobre ele a “responsabilidade” de protagonizar o desprendimento da atitude clássica e inaugurar o impulso romântico.
   Jacobino, girondino, maçom, herege, revolucionário... tudo lhe foi associado, sem que nada ele tivesse confessado. A única confissão, feita em poema, foi a do desejo de se aproximar do estilo camoniano, como sujeito poético e como sujeito empírico.
   No primeiro caso, é inegável a semelhança estilística entre os dois. Diria até que o seu desejo foi de tal forma concretizado que acabou por se deixar aprisionar pelo legado do príncipe dos poetas, ao ponto de ter prescindido do que poderia ter sido se o não fizesse. Sobrava-lhe um potencial criativo que poderia e deveria ter dado origem a um estilo próprio.
   Mas ele assim não quis.
   No segundo caso,  a situação repete-se. Sob a divisa “Erros meus, má fortuna, amor ardente”, escolhe um caminho adverso a um adolescente nascido em berço talhado a ouro. O que em Camões foi uma inevitabilidade, em Elmano torna-se uma opção cônscia: má fortuna procurada; erros seus não evitados; amor ardente que podia ter alcançado, tivesse sido «capaz de assistir num só terreno» (Gertrúria).
   Mas ele assim não quis.
   A vida foi-lhe encurtada por vontade própria. Nada retira de mim a convicção daquilo que eu designo por “suicídio em banho-maria”, dada a forma como o ilustre sadino perseguiu a referida divisa. Recomendo a leitura do romance “Já Bocage não sou”, empaticamente escrito por José Jorge Letria, e dir-me-ão se comigo concordam ou não.
   Deixo aqui um pedaço de arte lírica do grande génio:

          Apenas vi do dia a luz brilhante



          Apenas vi do dia a luz brilhante
           Lá de Túbal no empório celebrado,
           Em sanguíneo carácter foi marcado
           Pelos Destinos meu primeiro instante.

           Aos dois lustros a morte devorante
           Me roubou, terna mãe, teu doce agrado;
           Segui Marte depois, e enfim meu fado,
           Dos irmãos e do pai me pôs distante.

           Vagando a curva terra, o mar profundo,
           Longe da Pátria, longe da ventura,
           Minhas faces com lágrimas inundo.

            E enquanto insana multidão procura
            Essas quimeras, esses bens do mundo,
            Suspiro pela paz da sepultura.

2 comentários:

  1. Um grande poeta, ridiculamente retirado dos currículos do ensino secundário. Foi a forma mais rápida de o reduzirem ao anedotário, privando os nossos estudantes do notável Bocage lírico.

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  2. Um grande talento. Um homem que nos faz rir e chorar com igual poder.

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