As línguas com flexão de género
refletem a tendência machista de comunidades de matriz secularmente patriarcal.
Se tal propensão deve ser combatida e banida da sociedade atual, não implica tal
pressuposto que o mesmo se faça em relação à estrutura gramatical dessas
línguas (a meu ver).
Muitos são os exemplos do efeito de contágio
machista na língua portuguesa, desde logo na predominância do masculino em
géneros não marcados no enunciado. Vejamos, pois, alguns
casos concretos de interferência (ou pseudo-interferência) ideologia patriarcal
na nossa gramática:
a)
Concordância masculina com pronomes de género indefinido:
(1)
Perguntei por alguém que
tivesse sido abordado
(2)
Não vi ninguém agradado com a palestra
(3)
Nunca se é completamente
sábio
b)
Generalização masculina de palavras que condensam
nomes de géneros diferentes:
(4)
Está aberto o concurso de educadores
e professores (incomodativo se torna
o facto de sabemos que mais de 90% dos “educadores” são mulheres)
c)
Pronominalização masculina na substituição
gramatical de nomes de diferentes géneros:
(5)
Acabei de ver a tua mãe
e o teu irmão. Eles passam todos os dias por mim
d)
Referência a nacionalidades:
(6)
O português gosta de
fado
e)
Masculinização dos adjetivos em concordância com nomes de géneros
diferentes (ou géneros complexos):
(7) A Maria, a Joana, a Margarida e o Tomé estavam lindos (importa esclarecer que estes exemplos não configuram uma
interferência ideológica, mas um caso de evolução fonética. O latim dispunha de
três géneros – masculino, feminino e neutro – com terminações frequentes em ‑us, ‑a e -um, respetivamente. Os
casos de géneros complexos, condensadores de sequências de nomes de géneros
diferentes, eram marcados pelo género neutro -um. Com a evolução fonética, as consoantes finais daquelas
desinências foram caindo, provocando a ambiguidade –u, -a e –u, obrigando à fusão do masculino e do
neutro. Assim, a desinência atual –o conserva em si o género masculino e
neutro, reservando-se a desinência –a
exclusivamente para os casos de concordância no feminino.)
Termino como comecei, deixando aqui
uma questão muito concreta, bem reveladora da correlação machista entre
sociedade e língua:
(8)
A
primeira-dama esteve na cerimónia
(suponhamos que, em vez de um Presidente da República, tínhamos uma Presidente
da República e que era casada. Que designação protocolar seria dada ao seu
marido? Primeiro-cavalheiro? Não me parece. A língua não está preparada para
isso, pois não dispõe de qualquer palavra para tal referente.)
Dei com este blogue por acaso e gostei. Aborda um tema que me é muito caro. Mais: não é um blogue para encher chouriços, pois pelo que vejo publica pouco, mas o que publica tem um cunho pessoal, uma opinião académica.
ResponderEliminarPessoalmente, estou farto de blogues que se limitam ao copy/past e se atulham de posts sem critério, como se não houvesse amanhã.
Parabéns ao autor, com uma sugestão: publique mais sobre autores actuais, pois há-os com muito valor por aí.
Obrigado pelas suas palavras, com a promessa de que dedicarei mais atenção aos autores emergentes de língua portuguesa.
EliminarPessoalmente, já havia pensado inúmeras vezes nesta particularidade da nossa língua.
ResponderEliminarDe facto, para acentuar este aspeto há a referir que os estudiosos da língua eram predominantemente, para não dizer, apenas, do género masculino. Será que um dia se vai virar a página?
Tal como o acesso à produção literária, uma exclusividade ancestral dos homens. Poucas foram as mulheres (por razões muito diversas, mas essencialmente por puro machismo) que puderam deixar o seu talento estampado em livro. É o mundo que temos, Manuela. Aliás, era o mundo que tínhamos, estou em crer.
EliminarClaro que muita coisa mudou. Contudo, a meu ver, muito há ainda que fazer para podermos afirmar que "era o mundo que tínhamos". Parafraseando António Gedeão: ".... sempre que o "homem" sonha o mundo pula e avança como bola colorida entre as mãos de uma criança", esta nem sempre é a realidade, nomeadamente para as mulheres.
EliminarNestes versos, (que eu tanto gosto) a Humanidade aparece mais uma vez "de bigode"como em tantos outros.
Há que mudar os tempos e as vontades!!!