09/06/2025

“À última da hora” vs “à última hora”

 


   Na sua edição de 14 de maio de 2025, o Jornal de Notícias publicou um artigo sobre o último Festival de Cinema de Cannes e fê-lo com um título em caixa alta:
 
      “Halle Berry mudou de roupa à última da hora devido às novas regras de Cannes”
 
   Confesso que a indumentária que os famosos escolhem para determinadas cerimónias é assunto que pouco ou nada me interessa, muito embora tenha uma predileção especial sobre tudo que diga respeito à sétima arte, ainda mais tratando-se de Halle Berry, uma das atrizes mais talentosas do mundo do cinema. O que me levou a dedicar algum do meu tempo a este artigo foi o teor linguístico do seu título, mais concretamente a expressão “à última da hora” que, em bom rigor, constitui mais um vício de linguagem dos muitos que por aí grassam.
   Quantos de nós já não a utilizámos em conversações informais ou mesmo quando escrevemos à pressa? Acontece que a jornalista que assinou o texto, capitulado nos referidos termos, não estava a escrever à pressa nem tão-pouco a conversar num contexto de informalidade.
   Não é correto escrever/dizer “à última da hora”, tal como não seria aceitável escrever/dizer “ao último do minuto” ou “ao último do segundo”. Já agora, seria admissível a locução “à primeira da hora”?! Claro que não.
   A forma correta é “à última hora”, com o significado de “último instante”:
   É verdade que há dicionários que registam as duas formas para o mesmo sentido (como é o caso do Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências ou do Priberam), no entanto, tal preceito não legitima o uso do solecismo, na medida em que este tem merecido o repúdio da generalidade dos especialistas.




11/03/2025

“Visualização de um vídeo” ou “visionamento de um vídeo”?


   Existe ou não uma diferença de sentido entre “visualização de um vídeo” e “visionamento de um vídeo”?

   Provavelmente, muitos de nós já tropeçámos nesta dúvida, sempre que quisemos registar uma determinada atividade letiva num sumário de aula ou uma iniciativa num plano anual de atividades.

   Uma tendência mais desavisada leva-nos ao uso indiscriminado das duas formas, no pressuposto de que se trata de uma sinonímia como tantas outras disponíveis no léxico da língua portuguesa.

   Não, “visualização” e “visionamento” não constituem uma mesmidade. É certo que, ao nível da decomposição lexical, estes dois vocábulos partilham alguns semas, mas possuem outros que se mostram divergentes entre si, conferindo-lhes um carácter distintivo.

   “Visualizamos um vídeo” quando a ele assistimos numa perspetiva de mero espetador. No entanto, se o fizermos sob um ponto de vista técnico, aí já estaremos não a visualizar o vídeo, mas a “visioná-lo”.

   Importa ainda referir que “visualizar” também pode significar, numa conceção semântica mais generalizada da palavra, o simples ato de ver, ou seja, podemos “visualizar uma gaivota no céu” ou “visualizar o trânsito em hora de ponta”.

   Vejamos, pois, alguns exemplos do que acabámos de referir:

 

(1)       «Além do contexto de produção e exibição do filme, o contexto de visionamento é também um fator essencial para a apreciação de um filme.» (https://www.jornaldeleiria.pt/opiniao/cinema-or-arte-e-lazer)

(2)       «Adicionar filmes e séries à lista de visualização é um processo simples […]» (https://www.pcguia.pt/2024/09/como-usar-o-google-para-criar-uma-lista-de-series-e-filmes-que-quer-ver/)

(3) «Outros sintomas de alarme são a dor nos olhos, visualização de “flashes de luz”» (https://www.saudebemestar.pt/pt/clinica/oftalmologia/visao-turva/)

 

   Resumindo, em (1), está-se a olhar para um filme sob o ponto de vista técnico; em (2), olhamos para os filmes numa perspetiva de espetador; em (3), falamos apenas do mero ato de olhar.

18/01/2025

VEM POR AQUI, NÃO VÁS POR ALI

 

A vida é um caminho cheio de portas.

Portas que se abrem, que se fecham,

Portas que se abrem por descuido,

Mas que, abertas, já não fecham…

E BERRO: NÃO!

Portas que se fecham por desleixo,

Mas que, fechadas, já não abrem…

GRITO: SIM!

São portas manhosas, portas cruéis,

São portas amigas, portas fiéis.

13/12/2024

“Envio anexo” ou “envio em anexo”?

     

    Ao longo das últimas décadas, o correio eletrónico tem vindo a ganhar um espaço preferencial na comunicação entre pessoas, instituições e empresas. De tal forma assim é que seria impensável, nos dias que correm, qualquer um de nós prescindir de tal ferramenta.

    São muitas as suas potencialidades e estas não encontram paralelo nos meios de comunicação tradicionais: a rapidez com que chegamos aos nossos destinatários, recorrendo a um simples clique; o envio de mensagens a um grande número de destinatários, em simultâneo; e a possibilidade de anexarmos documentos/imagens. Ora, é precisamente daqui que decorre o tema que hoje vos trago.

    Quem nunca escreveu “envio em anexo” que atire a primeira pedra.

    Eu não vou atirar, garanto-vos.

    A palavra “anexo” é um adjetivo e não um advérbio. Não ocorre como modo da ação “enviar”, mas como qualificativo do nome a que se refere, com ele concordando em género e em número. Daí que se escreva “envio anexas as faturas deste mês” e não ““envio em anexo as faturas deste mês”.

    A tendência para a anteposição da preposição “em”, adjacente aos adjetivos, constitui um galicismo que se revela adverso ao cânone regulamentar da nossa língua. Nada me move contra os empréstimos linguísticos quando estes se mostram necessários, o que não é o caso. Quando assim não é, há que evitá-los.

    Será este mais um resquício da francomania que se viveu em Portugal nos anos finais do século XIX? Talvez. Nesses tempos, a nossa capital estava rendida à cultura francesa e eram muito comuns, por entre nós, as “macaquices de imitação”. Boas razões levaram, pois, o compositor Raul Ferrão a criar a célebre música “Lisboa, não sejas francesa”, chegada até nós pela voz sublime da nossa Amália Rodrigues:

 

Lisboa, não sejas francesa
Com toda a certeza não vais ser feliz
Lisboa, que ideia daninha
Vaidosa, alfacinha, casar com Paris

Lisboa, tens cá namorados
Que dizem, coitados, com as almas na voz
Lisboa, não sejas francesa
Tu és portuguesa, tu és só pra nós

09/06/2024

“FOI UM DOS QUE GANHOU” vs “FOI UM DOS QUE GANHARAM”

    Sem dúvidas, diz-se e escreve-se “Ele foi um dos que ganharam o concurso”.

    Este é um solecismo epidémico que grassa pelas bocas de muitos dos falantes da língua portuguesa. Influenciados pela força de atração da palavra “um”, caem no erro de estabelecer uma concordância enganosa entre ela e o verbo que lhe é posposto.

    Existe um processo heurístico que facilmente desmonta esta impolidez sintática e que passa pela inversão da ordem dos elementos na frase:

    1 - Ele foi um dos que ganhou o concurso;

    2 – Dos que ganhou o concurso, ele foi um.

    A concordância desviante desta construção frásica facilmente se faz notar no exemplo 2, onde se sobreleva a imperiosidade do plural do verbo “ganhar”.

    Outros dirão, no entanto, que a ocorrência do singular pode ser usada com propósitos enfáticos, de forma a destacar a importância de “um” no contexto daqueles “que ganharam o concurso”. A esses direi, contudo, que tal argumento resulta apenas de uma tentativa de salvar a face de escritores consagrados que usaram a forma singular do verbo neste tipo de construções. Os melhores escritores também erram e não são necessários tais contorcionismos linguísticos para lhes disfarçar as gafes, pois não será por elas que lhes cairão os parentes à lama e tampouco se lhes retira o inquestionável mérito literário.

    Para que evitemos esta praga linguística, sigamos o exemplo de Camões quando escreve “Era este Catual um dos que estavam corruptos”.

06/03/2024

Entre Tânger e tangerina

 


    Há dias, enquanto fazia algumas compras num minimercado perto da minha casa, lembrei-me de como há palavras que carregam, na sua origem, informação sobre a nossa história. Estava na secção da fruta e, num papel identificador, estava escrito «tangerinas: 2 euros o quilo”. Não foi o preço que me chamou a atenção nem tão-pouco a vontade de as comprar. Foi a palavra em si.

    Fala-se hoje muito, nas escolas, dos domínios de autonomia curricular (as chamadas DAC) e das suas potencialidades na exploração de percursos pedagógico-didáticos que intersetam aprendizagens de diferentes disciplinas. Logo ali, pensei nas muitas palavras da nossa língua que podem convocar um trabalho interdisciplinar bastante fecundo entre a Língua Portuguesa e a História. É que a palavra “tangerina” (outrora chamada laranja tangerina) pode ser, também ela, um discreto documento histórico.

    A palavra recebeu o seu nome de Tânger, a importante cidade do norte de África, conquistada pelos portugueses em 1471. Era aí, nomeadamente no seu porto mercantil, que o pequeno citrino era exportado para a Europa.

    A tangerina, variante feminina de tangerino (gentílico que significa natural da cidade de Tânger), crescia abundantemente nos pomares daquela região e foram precisamente os árabes que a introduziram em Portugal.

    Deixo aqui esta sugestão para “descascar” um trabalho articulado com os alunos, convidando também os professores de Ciência Naturais a juntarem-se a este desafio, pois há também que classificar o fruto sob o ponto de vista científico e nutricional.